Precipícios de sonho
Tudo o que há de melhor
numa gaveta:
lenços, papéis,
um ramo de alfazema em queda
livre
Precipícios de sonho
ou de lençóis,
estudos de amor,
às vezes,
recortes de jornais
O comício maior
numa gaveta:
um ausente orador,
alfinete agitando
multidões
O triunfo maior
de caos e cor
contido entre madeira
(ao rubro)
(in "Às vezes o paraíso", 1998)
A verdade histórica
A minha filha partiu uma tigela
na cozinha.
E eu que me apetecia escrever
sobre o evento,
tive que pôr de lado inspiração e lápis,
pegar numa vassoura e varrer
a cozinha.
A cozinha varrida de tigela
ficou diferente da cozinha
de tigela intacta:
local propício a escavação e estudo,
curto mapa arqueológico
num futuro remoto.
Uma tigela de louça branca
com flores,
restos de cereais tratados
em embalagem estanque
espalhados pelo chão.
Não eram grãos de trigo de Pompeia,
mas eram respeitosos cereais
de qualquer forma.
E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,
mas das Caldas,
daqui a cinco ou dez mil anos
devia ter estatuto admirativo.
Mas a hecatombe
deu-se.
E escorregada de pequeninas mãos,
ficou esquecida de famas e proveitos,
varrida de vassouras e memórias.
Por mísero e cruel balde de lixo
azul
em plástico moderno
(indestrutível)
(in "Minha Senhora de Quê", 1999)
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