domingo, 23 de outubro de 2011

Manuel da Fonseca (1911-1993)



 Este vídeo reproduz o som e a imagem de um disco chamado "pretextos para dizer..." editado em 1978, com voz de Mário Viegas (1948-1996) e música de Luís Cília. Trata-se do poema "Domingo" de Manuel da Fonseca, um dos meus poemas preferidos. Curiosamente, este ano na Festa do Avante, comprei uma t'shirt com uma ilustração linda em homenagem a este poeta, numa banca muito simpática de Santiago do Cacém. Quando vi a t'shirt fiquei com um sorriso parvo e indisfarçável, o que deixou surpreendida quem estava comigo naquela altura. Achei delicioso que tenha sido num Domingo, este encontro feliz com uma homenagem que posso vestir para recordar este poeta.

Manuel da Fonseca nos anos 80, fotografado por Rui Pacheco
DOMINGO

Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar…
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
«Bom tempo para amanhã»…
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.

Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!

Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina…

Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.
Partindo deste principio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores…

Penso isto, e vou a grandes passadas…
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia.
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz…
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
— ao sol como num ritual consagrado a um deus! —
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida…

Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura…
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.

A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos…
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bem feito
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés…
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos.
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
— rapaz, traz-me um café…

O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
— Olha, quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol…
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
— …. no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água…
… um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou…

O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?…
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou…
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes…
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó…
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!

Manuel da Fonseca

7 comentários:

  1. Bom dia :)
    Adoro quando me visitas e falas comigo!

    Hoje é o meu 1.º aniversário. Decidi andar a deambular pelo teu blog e coscuvilhar tudo.
    Amo Manuel da Fonseca. Amo Mário Viegas. Amo Luís Cília. Amo a Festa do Avante. Mais coisas em comum seria (quase) impossível ;)

    Secos e Molhados... com Ney Matogrosso. Imperdível!
    http://youtu.be/VTkhDnlwvcA

    Meu pé de laranja lima... Li quando tinha 10 anos. Oferecido, também, pela mana. Ajuda a lidar com a(s) perda(s). Custou-me um bocadinho por ser português brasileiro e ter palavras que não conhecia. O mano explicava. :}

    Onde estás, que não te vejo?
    Onde andas, que não te encontro?
    Ok! Percebi... Estás a 22 milhas ;)

    Xi-❤

    P(ost) S(criptum): Queres vir ao cinema? Vou ver Road To Nowhere. :)

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  2. Amigo Hugo:
    Não gosto dos domingos :( Nunca gostei e não sei explicar porquê.
    Mário Viegas...que saudades, da voz única e da sensibilidade e talento com que declamava poesia.
    Juntaste três iluminados que posso eu mais dizer ;)
    Hoje é domingo e curiosamente gostei...de estar aqui :)

    beijinhos

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  3. Olá Hugo,
    deparei-me aqui com um problema. Quis ouvir Mário Viegas declamar o poema, enquanto o lia, mas o som de fundo do teu blog tornou isso um pouco difícil.
    Mas não impossível, porque consegui fazer tudo!

    Embora o Domingo não seja o meu dia da semana preferido (é o sábado) gostei muito do poema de Manuel da Fonseca e adorei ouvi-lo na voz inconfundível do saudoso Mário Viegas.
    Obrigada Hugo, por amenizares com este post a tristeza deste dia cinzento e frio.

    Hugo, faço questão de dizer-te que, lá no meu canto, podes - e deves - manifestar a tua opinião livremente, de acordo com aquilo que pensas e sentes. Independentemente, daquilo que os outros possam pensar. Respeito e admiro a frontalidade, assim como respeito as preferências alheias.
    Um beijinho e um bom domingo.
    Janita

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  4. Nêspera, acho que estamos bastante perto. Pelo menos nos gostos que partilhamos.
    Mil beijos para ti.

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  5. Olha que três! Não é, FÊ?! Todos são referência inequívoca. Qualquer um deles alterou a nossa vidinha para melhor.
    beijos.

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  6. Janita, sempre que queira ouvir um vídeo que publico, pode clicar no pause da Rádio Hugo. Aliás, não é obrigada a levar com a música que de lá sai, se não lhe apetecer!
    Volte sempre e não se esqueça de clicar no pause da minha querida Rádio.
    beijos.

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  7. Qué pena que no entiendo todo lo que me gustaría.

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