Esta é uma notícia da qual quero falar há alguns dias.
Os gémeos belgas Marc e Eddy tinham 45 anos e eram surdos desde que nasceram, viveram sempre juntos, trabalhavam juntos e decidiram partir juntos. Por causa de um diagnóstico que indicava que eles perderiam a visão até à cegueira, decidiram que assim já não valia a pena. Com a capacidade de visão cada vez mais reduzida, encetaram a última batalha das suas vidas, exigiram o direito à eutanásia. O recurso à eutanásia é possível na Bélgica, a lei deste país exige que esse recurso seja usado apenas em situação de sofrimento extremo. Neste caso, a dor que os médicos avaliaram, não foi a dor física, mas sim a dor psicológica. Pela primeira vez na História da Humanidade, foi feita uma eutanásia conjunta e sem ser um caso de doença em fase terminal. Dia 14 de Dezembro, vestiram roupa nova e partiram juntos.
No Diário de Notícias de 23 de Janeiro de 2013, Baptista Bastos escreveu um texto fantástico sobre este caso. Transcrevo-o na íntegra. O texto tem por título "Duas mortes para cada um".
"Eram belgas, eram gémeos, eram surdos, eram operários. 45 anos, inseparáveis nas atenções ao mundo, e o mundo nada lhes ocultava porque o mundo era deles e do entendimento que do mundo faziam. O infortúnio não os afligia assim tanto porque se tinham um ao outro, nessa fraternidade secreta e única que pode moldar o carácter. Nem sempre os irmãos se dão bem; nem sempre os gémeos são exemplos de amor. Estes, por inusuais, seriam exemplo de tudo.
Passeavam, juntos, iam juntos ao cinema, apreciavam caminhar pelos campos belgas, e alimentavam uma particular simpatia pela terra que os vira nascer: Antuérpia. Agora, viviam em Bruxelas, eram vistos muitas vezes de mãos dadas, e, na linguagem gestual através da qual se entendiam, não dissimulavam a preocupação que lhes causava o mundo moderno.
Às vezes eram observados de viés: não só porque emitiam sons altos, próprios dos surdos, como aquele modo de andarem de mãos dadas não era um quadro natural, no espírito dos que julgam as coisas apenas pela aparência das coisas.
Os gémeos belgas riam desses soslaios e chegavam a forçar a nota, beijando-se como a um irmão se deve beijar. Sabe-se, agora, na discrição das existências que levaram, que um deles escrevia poesia, e que o outro alimentava o secreto sonho de ser pintor. Nada mais se sabe, ou pouco mais se sabe, destes dois irmãos, dependentes um do outro por decisão própria. Apenas, e não é pouco, que eram excelentes operários, e tinham grande predilecção pela cidade de Bruges-la-Morte, pelos bosques enevoados, pelo vinho quente tomado nas tardes frias.
A vida corria-lhes com a normalidade possível. As rotinas não se alteravam; admiravam a beleza das mulheres, o seu andar torneado, o verde dos olhos, os sorrisos oferentes. Iam ao futebol; claro que iam ao futebol, e apreciavam sentar-se, aos domingos, numa qualquer esplanada da Gran'Place observando os turistas estrangeiros, máquinas fotográficas na mão ou a tiracolo, só raramente entendedores da natureza e da história do país, tão martirizado pelo conflito idiomático como por estar sempre tão perto das desgraças europeias.
Foi quando, numa consulta médica de costume, ambos se souberam portadores de doença oftálmica irreversível. Em poucos meses ficariam cegos. O infortúnio não deixava os gémeos. Surdos e sem ver, sem se comunicar entre si, é que não. Solicitaram às autoridades que lhes fosse permitido o recurso à eutanásia. O caso, tornado público, quando, na verdade, devia ter pertencido aos domínios particulares, suscitou grande polémica. Mas eles levaram a sua avante. Onde está a razão? Tenho o entendimento de que cada qual pode fazer do corpo o que decidir: é a única propriedade privada de que, verdadeiramente, dispomos. Porém, lembro Malraux: uma vida nada vale, mas nada vale uma vida."
Baptista Bastos no DN de 23 -01-2013